domingo, 22 de março de 2009

ENTRE DOIS AMORES

Meu avô amou minha avó. E amou também a Gertrudes.
Minha avó não amava tanto assim meu avô. Já a Gertrudes, ah, essa sim o amou de verdade. Ele bem que tentava esconder sua existência, mas não conseguia. Suas histórias e desculpas eram tão aburdas que chegavam a ser engraçadas. Certo dia, chegou em sua casa com uma camisa azul, muito bem dobrada, e disse para minha avó:
“Néia, olha só a camisa que achei na rua. Novinha. E ainda é do meu tamanho. Não sou um homem de sorte?” Ela não dizia nada. Aprendeu desde pequena que teria que viver com o marido até o fim da vida, independentemente do que ele fizesse, e ponto final. E porque o via mais como um companheiro com quem dividiria a velhice do que como um homem por quem faria qualquer coisa por amor.
Certa noite, ele saiu para comprar um lanche para os dois que mudariam de apartamento no dia seguinte. Quando voltou ela estava morta, sentada no sofá, a cabeça pendendo para um lado, a TV ligada na hora da novela, as caixas de papelão espalhadas pela sala. Foi a única vez que vi meu avô chorar como criança, um choro triste, engasgado. Não havia nele nenhum sentimento de culpa, porque não havia razão para isso. Ele a amou, muito, de verdade, assim como amou Gertrudes, que só conhecemos um ano depois deste dia, quando ela foi visitá-lo no hospital onde estava internado. E foi então que eu, meus irmãos e minhas primas a adotamos como nossa “vódrasta”. E fizemos isso porque vimos nela uma mulher imensamente generosa, que viveu ao lado dele por mais de trinta anos em silêncio, que jamais exigiu dele que se separasse de minha avó, que passasse os natais e finais de ano ao lado dela, que compartilhasse os domingos ou que viajassem juntos. Não, ela o amou na solidão de seu apartamento, no vazio dos dias que demoravam a passar, na espera da próxima visita. Alguns podem dizer que ela foi louca, que deveria ter pensado mais em si, largado do meu avô e encontrado outros homens para dividir sua vida. Eu digo que ela foi uma mulher que viveu um amor incondicional e que eu, talvez como ela, possa um dia ser capaz de atitudes semelhantes, de optar em viver o pouco ao invés de lamentar o nada. Por isso nunca a julguei pela decisão que tomou em sua vida.
E foi só depois de nossa acolhida que ela, enfim, pôde viver ao lado dele. Pena que eles tiveram pouco tempo. Meu avô se foi dois anos depois, em um dia quente de verão. E ela, que por trinta anos o esperou, não quis esperar mais tanto tempo para encontrá-lo no andar de cima, e então, no outono do mesmo ano, arrumou suas malas e partiu.

2 comentários:

Mário Viana disse...

Lindo texto, Franz. Mesmo.
Essas histórias de um amor usufruído de modo fugaz, no fim da vida, sempre me deixam - como dizem os franceses - bourleversé. Mexido. Chacoalhado.
Foi lindo vocês terem incorporado a Gertrudes. Ela mereceu.
bjs

franz keppler disse...

Obrigado Mário,
sempre que me lembro deles, também fico mexido. Mas valeu a pena ter compartilhado com eles esse amor imenso. Bjos